[Escrevendo No Escuro #12] Como transformar um dos seus contos em filme
Este não é um passo a passo infalível, mas sim um relato de como as coisas deram certo para mim. Faça o mesmo, se quiser.
Citação da vez: "Minhas fantasias e obsessões não são apenas minha realidade, mas também as coisas sobre as quais meus filmes são feitos." (Federico Fellini)
Teoria antes ou depois da prática?
Em 2023, em uma viagem a Londres, passei por uma livraria grandona — com direito a quatro (ou cinco?) andares, cafeteria e mesas para estudar/escrever — da qual, obviamente, não me lembro o nome. Nela, havia um setor apenas de livros sobre roteiro audiovisual. E aqui não me refiro a um setor simbólico, não. Tire da sua mente a imagem da prateleira fina cujo andar mais baixo reúne cinco ou seis títulos sobre o assunto. Estou falando de prateleiras grandes repletas de livros publicados nos mais diversos idiomas, todos pautando diferentes aspectos da escrita audiovisual.
Como você já deve imaginar, tive que lutar para escolher apenas três livros, uma vez que meu salário pago em reais não atendia à etiqueta de preços em libras esterlinas. A escolha de um deles, contudo, resultou um tanto quanto óbvia.
Adaptation For Screenwriters, escrito por Robert Edgar e John Marland, foi lido durante a viagem e relido meses depois, no Brasil. Tudo o que aprendi nas páginas dessa belezinha, porém, não me serviu de nada para a adaptação de A Lua e a Tempestade. O fato é que o manual chegou tarde. Àquela altura, já havia passado um ano desde que o argumento do meu curta-metragem — adaptado do conto homônimo escrito por mim — ficara entre os finalistas do Prêmio ABRA Cardume, em 2022.
Sem nenhuma teoria estudada. Sem nenhum conceito aplicado.
Me pergunto se hoje eu teria feito diferente e respondo a mim mesma que sim. Mas não posso negar que foi a trajetória espontânea e pouco técnica que me levou a adaptar um dos contos que eu mais gostei de escrever e que, certamente, reflete muito mais emoção do que razão. Talvez seja por isso que o excesso de paixão e a ausência de teoria aplicada tenham feito com que A Lua e a Tempestade logo ganhasse contrato assinado com uma produtora que casa perfeitamente com a essência da história, deixando, então, de ser uma narrativa minha e passando a ser nossa.
Dividida entre o terror e o amor
Por estarmos em movimento, somos seres em constante mudança. Ou, pelo menos, deveríamos ser. Desconfio das pessoas que não mudam de opiniões, de caminhos, paixões ou preferências. Acredito que são, no mínimo, desinteressantes.
Por outro lado, seguindo a filosofia do dialético sobre a qual falei na edição passada desta newsletter, há coisas dentro de nós que permanecem intactas sempre. Podem ser emoções, valores, instintos. Não importa. Algo em você compõe a sua própria existência, e é esse algo imutável que faz de você quem você é.
No meu caso, eu diria que se trata da lesbianidade e tudo que a envolve. A maneira intensa com a qual duas mulheres se relacionam, a verdade absoluta dessa união, o sentimento de que nos falta o ar quando nosso amor está longe — sendo esse longe, muitas vezes, a esquina de casa, numa ida rápida ao mercado — e, como não poderia deixar de ser, o orgulho e o medo de nos mostrarmos ao mundo tal qual somos.
O lado sombrio da humanidade enche a boca para falar de diversidade, mas não está realmente disposto a nos aceitar, porque no fundo não quer nos entender. É esse lado que nos julga, nos marginaliza, nos transforma em objetificação sexual masculina, nos expulsa de casa e nos mata com olhares e facões. E é esse mesmo lado que busco retratar, com as emoções extremas que o terror pede, na narrativa de A Lua e a Tempestade.
Literatura fantástica virando cinema de terror
Pouca gente sabe, mas o conto A Lua e a Tempestade não é uma narrativa de terror, mas sim fantasia. A história faz parte de Além do Arco-íris, uma antologia de contos fantásticos com protagonistas LGBTQIA+ organizada por mim a convite da então Editora Rouxinol, em 2017. Um projeto muito querido, planejado e produzido com muito carinho, o qual reúne contos de grandes autores da literatura fantástica nacional, como Carolina Mancini, Meg Mendes e Rafael Sales.
Na época, eu escrevia mais fantasia do que terror. Talvez, por isso, criar uma história que pautasse a lesbofobia através da ótica do amor fantástico me resultou tão fácil, tão fluido.
Acontece que hoje em dia, como você bem sabe, tenho uma mão mais pesada, a qual capricha na escrita do macabro, no perverso e no bizarro — mão essa que é o tipo de coisa que muda a partir do nosso constante movimento e das transformações que ele acarreta.
Como falar, então, sobre aquilo que é imutável em mim, respeitando as mudanças sofridas ao longo dos anos que separam a publicação do conto literário à escrita do argumento audiovisual?
Não sei se cheguei a me fazer essa pergunta de fato porque, como já deve ter ficado claro, o processo de adaptação foi muito mais emocional do que lógico. Simplesmente, reli o conto várias e várias vezes, até decidir o que manteria intacto e o que contaria de outra forma, adicionando uma ou outra cena de maior impacto visual.
De maneira natural, como fui percebendo conforme escrevia o argumento, as outras formas e o impacto visual que senti a necessidade de colocar no texto eram o tipo de convenção que se espera de um filme de terror. Talvez, porque me sinta mais feliz escrevendo terror do que fantasia. Ou, talvez, porque a idade e o tempo me fizeram ver mais violência onde, antes, eu via majoritariamente amor.
Se eu pudesse te dar um conselho, seria…
Ao ler uma narrativa literária escrita por você, não tente se reconectar com a pessoa que você era quando a escreveu. O rio mudou. Você mudou. É impossível adentrar nas mesmas águas e ver os mesmos peixes com os mesmos olhos de antes.
Na hora de adaptar seu conto (ou novela, romance, etc.) à escrita audiovisual, permita que seu eu de hoje mergulhe na história e a reescreva com a ótica da pessoa que você é, e não da que foi. Sem perder, é claro, a sua essência imutável. Pois é ela, meu querido leitor, a coisa sobre a qual todos os seus filmes e livros são feitos.
Notas de rodapé da vez:
Semana que vem, publicarei um texto exclusivo para apoiadores da newsletter, em parceria com a Rastricinha Dorneles, produtora e co-diretora de A Lua e a Tempestade, no qual falaremos sobre a produção e direção do filme. Se você ainda não apoia Escrevendo No Escuro, a hora é agora!
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Na última semana de dezembro, li o livro “Gótico Nordestino", do
. Quero falar sobre ele aqui. Na próxima edição, talvez?Se você quiser acompanhar mais sobre as coisas que acontecem na minha mente criativa e na loucura dialética que é a minha vida, siga meu Instagram.
Muitas vezes ao reler algo escrito por nós, nos separamos com um outro eu, e isto é o que transforma a escrita. Fico imaginando que voltamos assim ao passado com nossos textos, escritos por outro eu.