[Escrevendo No Escuro #11] Ser mulher é fracassar quando se tem sucesso
Um texto sincero para um ano de bosta: isso é o que meu eu-mulher nu pode oferecer a vocês, queridos leitores.
Citação da vez: "A melhor terra para semear e fazer crescer algo novo outra vez está no fundo. Nesse sentido, chegar ao fundo do poço, apesar de extremamente doloroso, também é um terreno para semear.” (Clarissa Pinkola Estés)
Falta de habilidades e esforço descomunal
No livro O Resgate de Ofélia, a psicóloga Mary Pipher diz que o fracasso dos homens é atribuído a fatores externos; já o sucesso, é resultado das habilidades adquiridas por eles. Ou seja: quando os homens fracassam, eles não são culpados pelo que aconteceu; mas quando têm sucesso, são merecedores do que conquistaram. Em contrapartida, o sucesso das mulheres é atribuído à sorte ou a um esforço descomunal, enquanto nosso fracasso é considerado uma consequência da nossa falta de habilidade.
Embora essa seja uma teoria originalmente aplicável às narrativas que costumamos ver nos livros e nas telas, no que diz respeito às histórias com protagonistas adolescentes, hoje vou falar da minha não-ficção adulta. Sem fugir, é claro, do paralelo com a escrita.
Lá no começo de 2024 — este ano que me fez envelhecer uma década — fiz uma lista de metas colaborativas. Pensei que, ao criar metas que pudessem ser alcançadas em conjunto com outras pessoas, não carregaria o peso de ter que conquistar tudo por mim mesma. Afinal, se falhasse, meu fracasso não seria culpa da minha falta de habilidades.
Acontece que falhei. E falhei sozinha. Ou, pelo menos, isso é o que o peso do patriarcado (com suas definições limitantes do que é ser mulher a partir da ótica masculina) me fez sentir.
Tive, sim, alguns sucessos. Criei e dirigi sozinha O Drama É Dark. Dei aulas de construção narrativa por aí. Assinei um contrato de representação com a Agência Magh e me tornei, enfim, uma escritora agenciada. Publiquei dois contos de terror em coletâneas cujas propostas me desafiaram e fiquei satisfeita com o resultado de ambos. Organizei duas antologias de terror, sendo a leitora crítica de todos os contos escritos pelos novos e experientes autores que as conformam. Co-dirigi o meu primeiro curta-metragem de animação, em parceria com minha alma gêmea das artes, Rastricinha Dorneles. E tudo isso, sem exceção, foi fruto das minhas habilidades adquiridas.
Não nego, contudo, que esses mesmos sucessos foram conquistados enquanto eu exercia um esforço descomunal. Não para alcançá-los, por si só, mas para sobreviver ao caos que meu biológico, meu emocional e meu psicológico vinham enfrentando enquanto, à vista do mundo, eu vivia o ano da minha carreira.
Me pergunto quantas mulheres passam pelo mesmo em silêncio. Quantas de nós abraçam o masculino enquanto o feminino está colapsando? Quantas, diante dos aplausos daqueles que vêem o mérito através da ótica dos homens, não se sentem incapazes de ser mulheres por completo?
Fernanda Torres e o preconceito às verdades absolutas
Todo mundo sabe que Fernanda Torres é a mulher do ano, e que fique de castigo ajoelhado no milho aquele que pensar o contrário. Tanto é assim, que agora vieram os trechos de entrevistas antigas — muitas tiradas fora de contexto — para reafirmar ou contestar a intelectualidade da atriz. Um desses trechos me chamou atenção e lá fui eu procurar a entrevista completa. Esta, no Roda Viva, em 1992.
No fragmento de pouco mais de quinze segundos que viralizou nas redes sociais, Fernanda é perguntada se tem algum preconceito e responde que sim, tem preconceito de crente. Quem assistir à entrevista completa, no entanto, irá perceber que a atriz não se refere aos evangélicos, mas sim às pessoas que são crentes nas verdades absolutas e no poder de uma única ideia como ferramenta de salvação. Ela diz acreditar — e eu não poderia concordar mais — que a vida é relativa, dialética e que ideias contraditórias habitam na cabeça das pessoas que não são crentes no absoluto.
Fico pensando, cá comigo, que a única saída para nos livrar dessa limitação entre feminino ou masculino, bem ou mal, vida ou morte, é tornar complexas suas definições e ir tirando, de cada uma delas, aquilo que nos serve para determinado momento ou circunstância de nossas vidas. É fazer com que tudo, talvez, seja não-binário dentro de suas próprias binariedades. É acreditar que podemos falhar imensuravelmente em um aspecto da nossa vida e, ainda assim, obter sucesso em outro. Com habilidades adquiridas, como aos homens lhes é atribuído, e o esforço descomunal que cabe a nós, mulheres, empenharmos.
São essas as pessoas mais interessantes de se ter por perto. E hão de ser esses, também, os personagens mais interessantes de se criar.
Retrospectiva de 2024 e metas para 2025
Quase todas as newsletters que assino, eu diria, fizeram uma retrospectiva deste ano. Algumas, no estilo “melhores do ano". Outras, através de uma escrita mais fluida, beirando até o ficcional. O que não falta, portanto, é esse tipo de texto para você ler substack afora. Não quero, nem vou contribuir com meus dez centavos desta vez.
Agora, falando de metas para o ano que vem, permita-me ser mais escancarada: eu quero mais é que se foda essa lista. Nem individuais, nem colaborativas. Para o ano que vem, não vou estipular nenhuma meta. Se houver fracassos — e haverá, pois sempre há — não serão eles fruto de uma expectativa criada por mim no otimismo típico das Festas e dos primeiros dias de janeiro.
Para encerrar este texto vomitado, porém extremamente sincero, deixo aqui uma frase horrível que ouvi o ano inteiro e que me fez querer saltar no pescoço daqueles que as disseram: as coisas que têm que acontecer, acontecem.
Seguindo essa linha que sentencia o bem e o mal como ações imparáveis de um destino do qual não podemos fugir, agrego: que em 2025, os acontecimentos da sua vida sejam dialéticos, e não absolutos.
Notas de rodapé da vez:
A pré-venda de O Drama É Dark Vol. 2 já começou. Garanta o seu exemplar e prestigie os alunos da segunda edição do meu curso, os quais — verdade seja dita — escreveram contos dignos de veteranos.
Na semana passada, estive na cerimônia de premiação do VI Prêmio ABERST de Literatura. Foi lindo ver tantos colegas escritores reunidos, celebrando a potência que é a literatura nacional de terror, suspense e policial. Parabéns à diretoria da ABERST pela organização do evento e obrigada ao júri técnico que selecionou meu thriller young adult Na Cidade da Fúria como um dos finalistas na categoria Melhor Narrativa Longa do Séc. XXI.
“A Lua e a Tempestade”, curta-metragem de animação de terror roteirizado e co-dirigido por mim, agora tem um perfil no instagram para que você possa acompanhar todo seu processo de produção e distribuição. Siga aqui!
Baita título e texto.