Este não é um texto sobre Donald Trump, Neil Gaiman e a lista de e-mails misógina de 14 anos atrás
Nessa apoteose de machismo e misoginia, o que não me faltam são coisas para dizer. Mas como estou tentando preservar a minha saúde mental neste ano, vou nadar contra a maré. Até quando for possível.
Citação da vez: "Afrouxaram-se as cordas e, assim, desafina. Que pobre das rimas da nossa canção. Hoje somos folha morta, metais em surdina. Fechando a cortina, vazio o salão." (Fundo de Quintal)
Eu já fui uma jovem engajada
Lembro da minha adolescência, quando o pau estava comendo solto no mundo. Guerra no Afeganistão, depois no Iraque. Conflito Israel e Palestina, como sempre, dividindo o mundo em dois. O estouro do mensalão envolvendo praticamente todos os partidos do Brasil. Skinheads matando pessoas LGBTQIAPN+ na Paulista a pauladas. PCC parando São Paulo e deixando a 23 de Maio vazia às seis da tarde de um dia de semana. Feminicídio e crimes de ódio em alta, é claro. E por aí vai.
Na minha época pré-vestibular, estudando para entrar na Faculdade de Jornalismo, vivi o auge do meu engajamento político, como todo bom jovem de antigamente se prestava a viver (os de hoje ainda são assim?). Eu devorava informações sobre o período da ditadura militar no Brasil como quem devora um prato de arroz e feijão depois de trabalhar dez horas seguidas.
Na intimidade do meu quarto juvenil, li a duologia 1968, do Zuenir Ventura, e a série de livros sobre a ditadura, do Elio Gaspari. Comprei as antologias d’O Pasquim, investiguei tudo o que se pode imaginar sobre cinema marginal, Teatro Oficina, as letras de músicas que burlaram o AI-5, Vladimir Herzog, e até cheguei a visitar o filho do Gianfrancesco Guarnieri para uma pseudo-entrevista, com minha veia jornalística querendo florescer.
Acabei largando a faculdade de jornalismo, anos depois. Mudei para a Argentina para estudar Letras e viver meu sonho de escritora, mergulhada — e talvez, até, escondida — em pilhas de livros. Saí da minha bolha de classe média paulistana e vivi situações que jamais pensei que pudesse viver. Incluindo violência. Sobretudo, violência lesbofóbica.
Virei adulta, enfim. Ou, como diz minha afilhada, adulta premium (o que por definição se trata das pessoas que há tempos deixaram de ser jovens adultos). E como adulta premium, passei a entender a vida para além da intimidade do meu quarto e da pilha de livros na qual me escondia quando me sentia intimidada ou violentada. Entrei na máquina frenética do sistema capitalista, passei a trabalhar dez horas por dia e pegar freelas para pagar todas as contas e ter um dinheirinho sobrando para viajar, sempre que possível. Me transformei naquela pessoa que se entusiasma com ímãs de geladeira e decoração de cama-mesa-banho.
Enfim, virei a tia chata que eu tanto criticava quando era jovem. Uma alienada qualquer.
Será que isso é ruim?
Minha avó, sim, é que sabia das coisas
Certo dia, li à minha avó aquele famoso trecho de O Analfabeto Político, do Bertold Brecht. Estava nervosa porque a única coisa que ela fazia era ver novela, lavar a roupa ouvindo Fundo de Quintal e ignorar tudo o que estava acontecendo no mundo.
Estou falando daquele trecho que diz assim: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio depende das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.”
Nunca vou me esquecer da cara que a minha avó fez, embora suas palavras tenham desvanecido da minha memória com o passar dos anos. Uma prova concreta de que, de fato, há olhares que valem mais do que mil palavras.
Na época, ela tinha setenta e poucos anos e “já” era aposentada. Depois de ter trabalhado com tudo o que se pode imaginar na vida. Filha de operários italianos, ficou órfã quando ainda era criança, morou de favor na casa de parentes que a fizeram abandonar a escola e trabalhar com menos de dez anos, virou feirante, depois conseguiu um emprego como vendedora, e assim foi crescendo na vida, pouco a pouco. Foi traída por pessoas que se diziam amigas. Fez más escolhas que a levaram a perder tudo o que havia conquistado. Recomeçou do zero. Não uma, mas várias vezes. Criou três filhos e três netos (eu e meus irmãos) enquanto minha mãe trabalhava feito louca para pagar as mensalidades atrasadas da nossa escola particular.
E eu ali, com todos os privilégios que ela — e, posteriormente, minha mãe — lutou para me dar, carregada de uma soberba juvenil que é parte do combo intelectualidade engajada, tentando ensinar à minha avó o que era a importância da política. Eu, que nunca tinha me preocupado com o preço do feijão e da farinha, falando a ela, que passara fome.
Tentando ser mais como minha avó, a cada dia
Que fique claro que não estou, de nenhuma forma, comparando minhas vivências à da minha avó. Sigo sendo privilegiada em um mundo onde as dificuldades que ela passou — e muitas outras, considerando o incontestável conceito da interseccionalidade — se perpetuam na vida de milhões de pessoas no nosso país.
O que estou dizendo aqui é que diante de todo o caos que acontece no mundo, hoje, tal como minha avó fez, prefiro circenses a Bertold Brecht. Não porque esteja alienada, de fato, mas porque me sinto exausta de ler e ouvir todo santo dia as mesmas notícias de sempre. Notícias de guerra, violência, ódio, caos. Notícias que me fazem acreditar cada vez menos no futuro da humanidade.
Semana passada, assisti a um reality-show que, de tão ruim, era bom. Hoje, provavelmente, vou fazer o mesmo. Depois de trabalhar o dia inteiro e limpar a casa ao som de Fundo de Quintal.
Nota de rodapé da vez:
Comprei um livro no fim de semana. Chama-se Deusas, bruxas e feiticeiras: histórias de quando Deus era mulher, Julia Myara (Ed. Planeta). É a segunda leitura do ano. Aceito sugestões para a terceira, aí nos comentários.
"Mas iremos achar o tom
Um acorde com lindo som
E fazer com que fique bom
Outra vez o nosso cantar
E a gente vai ser feliz"
Obrigado pelo texto, pela lembrança de uma canção tão bonita e por ser parte da luz do fim do túnel desse mercado tão escroto.
O trecho da tua vó: incrível