[Especialização Em Palavras #06] A procrastinação não é um pecado capital
Em um mundo no qual você precisa fazer tudo para ontem, procrastinar pode ser uma maneira de reconhecer o seu valor. Mas, como colocar isso em prática sem que a irresponsabilidade se apodere de você?
Citação da vez: “Until you value yourself you will not value your time. Until you value your time, you will not do anything with it.”
(M. Scott Peck)
(Há duas semanas, no aeroporto de Guarulhos, eu estava prestes a viajar aos EUA para procrastinar várias tarefas)
Procrastinar é tão ruim assim?
No dia 27 de junho, fui entrevistada ao vivo pelo canal PodLetras — entrevista à qual você pode assistir aqui — e, entre um assunto e outro, foi-me perguntado o que eu achava sobre procrastinação.
Achei que minha resposta passaria batido, tantos foram os temas legais pautados na live. Entretanto, algumas pessoas que assistiram à entrevista me disseram que meu posicionamento as fez pensar no equilíbrio entre prioridades, responsabilidade e escolhas.
Bonito, né? Mas, olha… eu já estive (e continuo estando) nesse lugar de procrastinadora. Acredito que você também. Quem diz que não procrastina nunca ou está mentindo, ou está à beira de um burnout.
Pensando por esse ângulo, procrastinar não só pode, como também deve fazer parte da sua estratégia de escrita. Afinal, quem não tem a saúde mental em dia, não consegue produzir uma escrita de qualidade, não é mesmo?
Mas, atenção!
O objetivo desta edição da newsletter não é te incentivar a fazer uma panela de brigadeiro, deitar no sofá, assistir a todos os filmes do Harry Potter de uma vez e ficar sem tomar banho dois dias. Hoje, quero falar sobre a procrastinação não-agressiva (um termo que acabo de inventar e sobre o qual você pode conversar com seus amigos, antes que seja deturpado por aí).
Momo, o senhor do tempo e os homens cinzentos
Michael Ende escreveu um dos livros mais incríveis da história da literatura, na minha opinião. Trata-se de um belo exemplo da típica narrativa infantojuvenil que pega forte nos adultos e nos faz questionar nossa própria existência. Um socão bem no meio do estômago. E sem nenhum dragão-que-parece-cachorro voando pelo céu.
Estou falando de Momo e o Senhor do Tempo.
(Uma foto tirada no começo de 2021, no meio da pandemia, quando fiz uma salada com os brotes de feijão que eu mesma havia germinado e cultivado durante dias para, então, almoçar prazerosamente relendo Momo e o Senhor do Tempo)
Em resumo, o livro narra a jornada de Momo, uma menina órfã que veio de lugar nenhum e que, com seu jeito simples e profundamente sábio de ser, consegue resistir à exploração dos homens cinzentos — seres que se alimentam do tempo das pessoas, sem que nenhuma delas o perceba.
Antes que você se pergunte o que isso tem a ver com procrastinação, eu poderia listar uma série de associações entre os homens cinzentos e o ritmo frenético da vida adulta na atualidade, entrando em pautas como política, consumo, tecnologia, competitividade laboral, questões sociais, interseccionalidade, etc.
Mas, para não deixar essa edição da newsletter mais longa do que deve ser e acabar fugindo do tema escrita, vou me ater ao conceito de procrastinação não-agressiva, aquele que elaborei parágrafos antes.
Momo consegue resistir aos homens cinzentos porque ela não entra nas engrenagens da máquina que nos faz querer produzir mais, crescer mais, ganhar mais, saber mais, falar mais, ter mais. Momo simplesmente vive. E vivendo, ela escuta mais do que fala, aprende mais do que ensina e valoriza as relações que já tem, em vez de querer ter cada vez mais relações (lê-se, aqui, conexões também).
A protagonista de Michael Ende, enfim, procrastina o que para todos é primordial: a produção por si só. Ela dá prioridade à vida que acontece enquanto os outros gastam tempo em fazê-la acontecer.
Escrita e procrastinação não-agressiva (ou procrastinação responsável)
De nada adianta viver a vida em sua plenitude, como Momo, se não formos responsáveis com nossas obrigações. Até porque, infelizmente, não habitamos em um livro de fantasia do Michael Ende, e procrastinar aquilo que é necessário para que nossa vida aconteça pode levá-la ao fracasso.
Pensando na escrita enquanto profissão, para ser mais clara, a procrastinação irresponsável pode levar-nos ao desemprego, à falta de oportunidades e a tantas outras portas que, uma vez fechadas, dificilmente serão abertas de novo.
Em contrapartida, a procrastinação responsável — aquela que te liberta da produção frenética e te permite viver momentos de qualidade não como uma recompensa após longas horas de sacrifício, mas sim como uma normalidade da sua existência em equilíbrio — pode tornar sua escrita mais fluida, coerente e menos enrolada pela pressão do tenho que escrever o quanto antes.
Isso é o que eu tenho feito com esta newsletter que, a princípio, seria enviada quinzenalmente, às segundas-feiras, e que a partir de hoje será enviada de acordo com a minha existência em equilíbrio, em uma procrastinação não-agressiva que evita que o prazer de escrever esta edição seja dominado pelo peso da obrigatoriedade.
CTA aleatório da vez para gerar um engajamento útil:
Você sabe como diferenciar as tarefas que podem ser procrastinadas de maneira não-agressiva daquelas que, uma vez procrastinadas, podem trazer problemas reais para a sua escrita? Me conta!👇
Notas de rodapé da vez:
Bati um papo incrível com o pessoal do Papo Fantástico Podcast, no qual falei sobre minha descoberta como escritora, meus trabalhos mais recentes e minha relação de amor com a Argentina. Vale a pena ouvir aqui!
Não vou recomendar outras mil e uma coisas para você fazer desta vez. Sugiro, em contrapartida, que você dê uma procrastinada não-agressiva naquela escrita que está corroendo a sua criatividade.